Património
Património é o que herdamos do pai, o pater latino, assim se revela o étimo. Matrimónio é o casamento, como nos diz o uso. É bom que não esqueçamos o que a língua já nos impôs ainda antes de tomarmos a palavra para discutir o que é ou não, e de que modos, pertença de todos.
Aquilo a que chamamos património já não pode ser apenas o que herdámos e já não herdamos apenas do pai. Agora, talvez seja algo indefinível, mas de que se fala sempre como se tivesse contornos muito nítidos. Às vezes, é uma coisa que se usa em discursos políticos, para mostrar consideração e preocupação pela cultura – não necessariamente com um equivalente prático, diga-se.
Construções arquitectónicas de pendor erudito e vestígios arqueológicos foram, durante muito tempo, a matéria que compunha o património. Com o tempo, a semântica tornou-se mais vasta, confirmando que nenhuma palavra vive parada no tempo.
O património é o que nos é comum, diz-se, no sentido de ser reconhecido como relevante para a comunidade. Mas quantas comunidades há na mesma geografia? E como se cruzam, sobrepõem e interpelam? Podemos ter respostas?
Material e imaterial. Sonoro e artístico. Linguístico e gastronómico. Literário e industrial. Afectivo e arqueológico. E sempre mais alguma coisa. As formas de nos cumprimentarmos, diferentes de sítio para sítio, são também um património comum, nunca listado nem protegido.
Uma pedra no meio do caminho, sem evocar Drummond de Andrade, é ela património de alguém? Depende do caminho, da pedra e de quem a vê. O património também será isto, termos mais perguntas do que respostas arrumadas.
Apesar das perguntas sem resposta fechada serem mais ricas do que as respostas que já não engendram perguntas, há quem prefira arrumar o património num qualquer cânone, sempre apresentado como o único válido para todos os lugares e todas as eras. É também um património, esta vontade de fazer uma lista e decretá-la verdade suprema.
O peso de um cânone varia conforme o sítio por onde lhe pegamos. Listas – de quadros, composições musicais, livros, monumentos – há muitas e variam com as épocas e muito com quem as faz, normalmente homens brancos, não esquecer. O cânone tenta tomar conta de algumas delas, mas talvez sirva para pouco mais do que discutir (o que é muito e também valioso).
O património europeu, ocidental, do hemisfério Norte, aparece sempre como o único, o relevante, aquele que tem cabimento nos grandes livros de História, aceitando algumas contribuições exóticas por conta do colonialismo. Quer fazer-nos esquecer que património é algo que todas as comunidades possuem, independentemente do nome que lhe dão, e que é algo que congrega diferentes comunidades sem ligar a fronteiras espaciais ou temporais.
Aquilo a que tantos museus ocidentais chamam de seu inclui o património roubado (é essa a palavra) a outras comunidades, nalgum momento da História colonizadas por países que falam do património com tanto respeito. Estátuas de divindades, códices, pinturas, alfaias agrícolas, esculturas de toda a espécie, tudo roubado e desviado para exibição noutros lugares.
Outros patrimónios nos integram e dão vida, longe de cânones, listas de obras ou imaterialidades. Não serão património as bibliotecas públicas, as salas de espectáculos, os cinemas, as escolas, a saúde pública? Os jardins, as livrarias, os museus, as paisagens protegidas e as que precisam de protecção? Herdámo-los pela cidadania e garantir que continuam a existir neste usufruto comum é capaz de ser um dever (e deveres também são, de algum modo, património, herdado ou conquistado).
A máquina que permitiu reproduzir a escrita não será também património? Veneramos o texto, mas não podemos esquecer essa invenção que Gutenberg foi buscar a outras invenções (do lagar de azeite à ourivesaria) e que inventou uma nova civilização em boa parte do mundo. Herdámos essa máquina, mesmo que com outras peças e engrenagens sempre renovadas, e dela somos devedores.
Criações Gráficas
Memória Descritiva de Zé Tavares
Património e arte pública.
Património vs. Matrimónio.
Pater. Pai. Herança. vs. Casamento.
Um retrato do homem incompleto na sombra e no que já não se vê pela passagem do tempo, e dos seus vários detalhes invisíveis.
Esta sequência que pode ser lida do retrato para os detalhes ou no sentido contrário, dos detalhes para o retrato.
Retrato. A chave. A pedra [1]. A jóia [2] com pedras preciosas. O tempo. A caixa que guarda e é guardada.
Digitalmente desenhados e aplicados na rua como stickers, serão as heranças sempre falsas, como muitas outras.
[1] do rim
[2] herdada