Texto: Sara Figueiredo Costa

Criações Gráficas: Liliana Velho

Deste lado do mundo, construímos para a eternidade, mesmo sabendo que a eternidade é coisa para não existir. Era assim com os antigos e não mudou. Noutras geografias, construía-se para o presente, que era uma espécie de eternidade permanente, sem o peso da posteridade. Na China, os templos faziam-se de madeira e papel. Às vezes ardiam e ninguém lamentava a perda. Juntava-se mais madeira e papel e fazia-se outro templo. Os deuses não são esquisitos com os materiais que usamos para lhes falar ou para os inventar.

Milhares de páginas de estudos e ensaios tentam descrever esta forma chinesa de incorporar passado e memória sem orgulhos de eternidade, mas foi o poeta e arqueólogo Victor Segalen quem melhor percebeu do que se trata. E explicou-o num verso, não num tratado: «Nada de imóvel escapa aos dentes famélicos das eras.»

A Psicanálise e a Neurologia ensinaram-nos que a memória tem truques: não lembramos o que aconteceu, mas antes o modo como sentimos e vivemos os acontecimentos, sendo que esse modo não é estável, vai mudando connosco, como quase tudo. Talvez por isso um quadro seja considerado sem valor numa época e valiosíssimo noutra qualquer. Talvez por isso olhemos hoje para um aqueduto romano vendo os vestígios de uma civilização, e não uma infra-estrutura para transporte de água.

Quem ergueu pedras para lembrar à posteridade uma batalha, uma morte, um feito grandioso, saberia que a posteridade também se faz de acasos?

Esquecemos o nome dos homens e mulheres que levantaram pedregulhos, construindo antas para albergarem os restos mortais dos seus entes queridos. Esquecemos o nome dos entes queridos. Ainda assim, esses velhos monumentos fúnebres continuam a ser um símbolo de memória. Podemos não saber o nome dos mortos, mas vemos nessas antas o nosso futuro. Ver o futuro também é uma espécie de memória.

Sabemos o nome do homem que mandou construir o Convento de Mafra e sabemos que esse homem era rei. Já não sabemos o nome de quem transportou as pedras, as cinzelou, as assentou, mas podemos imaginá-lo. Foi o que fez José Saramago, dando ao imaginário Baltazar o certificado de participação nessa obra colectiva, com isso honrando o nome desconhecido de todos quantos ali trabalharam (e muitos pereceram).

A literatura não se classifica como monumento, ainda que possa ser património. Talvez seja sobretudo um modo de dar forma a essa amálgama de coisas – umas acontecidas, outras desejadas ou temidas, outras ainda impossíveis – que compõem aquilo a que chamamos memória.

Filha de Urano, o céu, e de Gaia, a Terra, Mnemosine dormiu com Zeus (e quem não dormiu com Zeus, nesse promíscuo panteão grego?) e da união nasceram as Musas. Não espanta que a memória seja o combustível primordial para a criação. E para a existência, já agora.

Quem estuda o labirinto da mente distingue memória declarativa e memória implícita. Com uma lembramos factos e acontecimentos, com a outra lembramos sem saber que lembramos – e andamos de bicicleta, abraçamos, picamos cebola, tocamos guitarra. Nem uma nem outra chegam para nos explicar.

O labirinto. Lembramos sempre o Minotauro, monstro escondido, Teseu, herói a precisar de auxílio, e Ariadne, mulher capaz de solucionar o mundo apenas com um fio. Devíamos lembrar sobretudo Dedalus, inventor de um caminho fechado que nem o próprio saberia percorrer sem se perder. É ele quem melhor nos espelha.

Criações Gráficas

Memória Descritiva de Liliana Velho

O património cultural e artístico no espaço público desempenha um importante papel no processo de lembrar e de conservar a memória. Representando factos do nosso passado muitas vezes esquecidos e outros que permanecem vivos no nosso quotidiano.

Valorizamos a memória, mas quanto podemos guardar? Como podemos armazenar? E em que condições? Lutamos para não perder a lembrança dos melhores momentos vividos, e porquê tanto medo do esquecimento?

Para este glossário foram realizadas fotomontagens que brincam com as esculturas, às vezes escondendo-as, usando a natureza e outras vezes actualizando-as, como a escultura do Aquilino Ribeiro. Se o autor escreve-se nos dias de hoje, usaria um ipad? Existe também a vontade de ocupar e viver certos lugares, como a Glorieta a Thomaz Ribeiro, que aqui se imagina a ser vivida. Habitada e desarrumada.

Este foi um exercício de experimentação, de reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente. Perceber e olhar para o espaço, celebrando a memória mas também o esquecimento. Um caminho desde a comemoração até à amnésia. 

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